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Carta de um tempo de guerra

Quarta-feira, 09.03.22

Querido XX

Nunca poderei expressar a minha gratidão por todas essas palavras amigas que me enviaste. Gostava de me fazer de forte, e dizer que não estou comovido, como os homens fortes, diante desse papel amarrotado, que me escreveste em breves pausas de combate, com o pequeno lápis que levas sempre no bolso esquerdo, ao lado das balas.

Como responder a tal fidelidade? Essa fidelidade amiga que resiste aos campos nevados, aos gritos dos homens em desespero, ao impacto surdo das bombas disparadas, na verdade, por ninguém. Essa fidelidade que resiste ao frio que aconchega os cadáveres dos nossos amigos de infancia que partiram contigo. Esses das brincadeiras ingénuas, dos jeitos amuados, dos joelhos esfolados, dos cabelos despenteados e colados à testa pelo suor das corridas intermináveis. O nossos amigos que eram os príncipes imortais das nossas aventuras sonhadas juntos.

Aqui rezo, cheio de dor, por ti. E tu retribuis-me com uma amizade sincera, com um: “está tudo bem” ou um “não te preocupes”. Sabes que não é assim, que qualquer bala perdida fechará os teus olhos para sempre. Mas isso não te importa. Perguntas-me pelos meus estudos, pelos meus amores, pelo meu futuro (que viverei quando já tiveres, há muito, desaparecido). Pedes ao Senhor que me abençoe.

A verdade é que a minha vida foi também desfeita pelos estilhaços de todas essas bombas que vos matam. Sinto-me a perder o sentido de ordem interior em que tinha empacotado a minha existencia. Desfeito de saudades vossas. Magoado pelas vossas palavras, talvez as últimas, que me consolam. Magoam e consolam, por serem as últimas.

Vou tentando meditar, tentando não deixar que as imagens dos vossos rostos me atrapalhem o que me resta da luz de Deus. Imagino essas trincheiras enlameadas neste inverno que não deixa entrar a primavera. Talvez as primeiras flores surjam quando vocês já não estejam entre nós. Talvez vocês morram de verdade e estas palavras já não vos cheguem.

Fizeram-se gigantes para mim. Existem apenas no silêncio da noite, quando me recolho para meditar em silêncio a Palavra de Deus como único ponto de cristalização que dá horizonte à minha vida. A única coisa que ainda me ordena, que me re-situa, que me consola. Como um íman que recolhe os últimos restos de profundidade das coisas, as últimas fontes de esperança, os últimos olhares de benevolência. Nesse momento apresento ao Altíssimo o último lugar de disciplina, de quietude, de cura e de alegria da minha vida. E recordo baixinho as palavras do Salmo:

Ele estabeleceu a paz nas tuas fronteiras
e saciou-te com a flor do trigo.
Ele manda as suas ordens à terra,
e a sua palavra corre velozmente;
faz cair a neve, branca como a lã,
espalha a geada como se fosse cinza;

faz cair o granizo como migalhas de pão;
com o seu frio, quem pode resistir?
Envia a sua palavra e o gelo derrete-se;
faz soprar o vento e correr as águas

(Sl. 147, 14-18)

Esta manhã o gelo começou a derreter e as primeiras flores brotarão em breve, com os pássaros que chegam do sul. Daqui a poucas semanas festejaremos a Páscoa, e cantaremos alegres a sua mensagem de paz. ´

Escrevo-te estas palavras nas esperança que as leias. Se não puderes, que os anjos as sussurrem aos ouvidos, quando repousado, entrares na glória de Deus

Que o Senhor te abençoe e te guarde.

(retirado de https://pontosj.pt/opiniao/carta-de-um-tempo-de-guerra/)

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publicado por Maria Oliveira às 18:01